Beber leite é um hábito moderno: após a amamentação, nenhum mamífero consome leite (e muito menos de outra espécie). Este padrão também foi seguido, durante 2,5 milhões de anos, pelos vários hominídeos (incluindo o homo sapiens) que habitaram a terra. Só após a revolução agrícola (há cerca de 10.000 anos), através da domesticação dos animais, é que o consumo de lacticínios se tornou possível. O leite é, assim, um alimento relativamente recente na alimentação do ser humano (cujo genoma não sofreu alterações significativas nos últimos 10.000 anos), o que explica porque é que cerca de 70% da população adulta mundial apresenta intolerância à lactose (dificuldade/impossibilidade de digerir o açúcar do leite, que causa diversos efeitos adversos de ordem gastrointestinal – como flatulência, diarreia, dor e desconforto abdominais).
Efeitos do leite na saúde:
Lacticínios, como leite, iogurte e queijo fresco, apesar de possuírem um Índice Glicémico (IG) baixo (não provocam um aumento pronunciadoda glicemia), aumentam muito a libertação de insulina pelo pâncreas, o que, a longo prazo, pode causar resistência à insulina, que está na origem de várias patologias/problemas de saúde e/ou fenómenos fisiológicos, como síndrome metabólica (inclui diabetes tipo 2, hipertensão, dislipidemia, obesidade abdominal e estado pró-trombótico), síndrome do ovário poliquístico, alguns cancros (próstata, mama e cólon), miopia, acne (foi associado em dois estudos epidemiológicos ao consumo de lacticínios), aumento da estatura (diversos estudos mostram o papel dos lacticínios) e diminuição da idade da menarca/puberdade.
As diferenças entre leite materno e bovino:
É preciso realçar o que os nutricionistas e pediatras há muito sabem: as características nutricionais do leite materno e do leite bovino são diferentes e a amamentação deve ser mantida até que a criança tenha, pelo menos, um ano (em sociedades de caçadores recolectores, a amamentação varia entre dois a quatro anos).
As culpas da Beta-Celulina, um composto do leite:
Existem estudos epidemiológicos e experimentais a associar o consumo de lacticínios a alguns cancros (a evidência é mais forte para ovários, testículos e próstata), à doença de Parkinson e à aterosclerose. Os motivos podem estar relacionados com o fenómeno da insulina atrás descrito e com alguns componentes do leite, designadamente a galactose, o cálcio e a beta-celulina (BTC), que foi descoberta recentemente. A BTC é um factor de crescimento presente em todos os leites, que sobrevive à pasteurização, processamento (sendo também encontrada no queijo) e processo digestivo e tem a capacidade de entrar na circulação e ligar-se a um receptor (EGFR) que existe em diversas células epiteliais e aumentar a sinalização desse receptor, o que vai dar origem a uma série de fenómenos dentro das mesmas. No caso de diversos cancros (mama, cólon, próstata, ovários, pulmões, pâncreas, bexiga, estômago, cabeça e pescoço), sabe-se que há um aumento do número de EGFR e da sinalização dos mesmos e que existem já ensaios clínicos de fase II para fármacos que bloqueiam o receptor e a sua sinalização. Apesar de ainda não terem sido realizados estudos sobre leite, BTC e cancro em humanos, pensa-se conhecer o mecanismo e existem estudos epidemiológicos que ligam o consumo de lacticínios a alguns destes cancros (próstata, ovários, pulmões, estômago e pâncreas).
Leite e Osteoporose: magnésio é um mineral esquecido:
Culturalmente, o leite é tido como um alimento perfeito, por conter proteínas de alto valor biológico e cálcio, que é defendido como a melhor arma contra a osteoporose, o que não é totalmente verdade. É importante esclarecer que o cálcio é apenas um dos nutrientes necessários para a prevenção da osteoporose. Se existir um desequilíbrio entre o cálcio e os outros nutrientes (por défice de ingestão dos mesmos e/ou excesso de ingestão de cálcio), pode até ocorrer desmineralização óssea. Um desses nutrientes é o magnésio, cuja deficiência (que pode ser causada por um consumo elevado de cálcio) pode causar diminuição da densidade mineral óssea e aumentar o risco de fracturas. O rácio cálcio/magnésio ideal varia entre 1/1 e 2/1, ao passo que o rácio cálcio/magnésio no leite e derivados é superior a 10/1.
Dieta do paleolítico sem leite:
Se tal não basta para desmistificar a ligação entre leite, cálcio e osteoporose, olhemos para os registos fósseis, que indicam que os nossos antepassados do Paleolítico, apesar de não beberem leite após a amamentação, apresentavam uma densidade mineral óssea igual ou superior à de actuais adultos saudáveis e activos, o que, provavelmente, se devia à exposição solar (que permite a síntese de vitamina D), ao trabalho físico regular e intenso (o exercício, em especial o treino de força, é essencial para manter a saúde óssea) e ao consumo elevado de vegetais.
Se não beber leite, como posso obter cálcio?
Ao contrário do que se pensa, é possível obter quantidades adequadas de cálcio sem recorrer aos lacticínios. Os vegetais, como os brócolos e couves, também contêm cálcio, e apresentam uma taxa de absorção deste mineral semelhante à dos lacticínios. Apesar de grama por grama, os lacticínios conterem mais cálcio que os vegetais indicados, estes contêm um rácio cálcio/magnésio entre 2/1 e 3/1, além de vitamina K (outro nutriente importante na manutenção da saúde óssea) e potássio (que é o principal precursor de bicarbonato, que demonstrou em estudos de intervenção de curto e longo prazo diminuir a excreção de cálcio e melhorar o metabolismo ósseo). Além disso, um estudo epidemiológico de 12 anos realizado pela Universidade de Harvard com mais de 77 mil mulheres verificou que a ingestão de dois ou mais copos de leite por dia estava associado a maior incidência de fracturas nestas mulheres.
Pelo contrário, o consumo elevado de vegetais, além de todos os benefícios já conhecidos pelo público, está associado a uma maior densidade mineral óssea e menor incidência de fracturas.
E quem não vive sem leite?
Com base na minha análise, não considero o leite de outra espécie um alimento adequado ao ser humano. No entanto, obviamente que indivíduos que não sofram de nenhuma das patologias associadas ao consumo de leite e derivados (nem tenham risco de as desenvolver) e sigam um estilo de vida saudável (exercício moderado regular e dieta e sono adequados) poderão consumir pequenas quantidades de lacticínios fermentados de agricultura biológica, desde que tal não produza reacções adversas. Walter Willett da Harvard School of Public Health recomenda que não se exceda um copo de leite por dia. Do mesmo modo, atletas também poderão beneficiar da utilização (em especial após o treino) de um suplemento que contenha proteínas isoladas do soro de leite (extraídas por membrana de fluxo cruzado com valores de corte entre 3 e 30 kiloDaltons), se tal não causar efeitos indesejáveis.
Reações alérgicas / doenças auto-imunes:
Refira-se, também, que em pessoas geneticamente predispostas, algumas proteínas do leite bovino (e também ovino e caprino) podem causar reacções alérgicas e doenças auto-imunes (por exemplo diabetes tipo 1, esclerose múltipla, artrite reumatóide e doença de Crohn).
Fonte-“Revista Performance” Nº 70 – Setembro 2007.